Menores transgênero e o desafio de crescer no Brasil, país que mais mata trans
"Mãe, eu posso morrer hoje para nascer menina amanhã?". Agatha tinha quase quatro anos quando disse a Thamirys Nunes que não queria ser menino.
Sua mãe, de 33 anos, soube então que teria pela frente um longo caminho de obstáculos no país com maior número de homicídios de pessoas trans no mundo e com poucos centros de assistência pública para menores inconformados com seu gênero de nascimento.
"Desde pequenininha, ela demonstrava um desconforto com o gênero masculino, atribuído no nascimento", queria brincar com bonecas e usar argolas, conta à AFP Thamirys, moradora de São Paulo.
"Os esforços para reforçar o masculino só ofendiam, magoavam. Por isso permitimos" que se identificasse socialmente como menina e mudasse de nome, acrescenta.
No Brasil, as cirurgias de mudança de sexo só são permitidas a partir dos 18 anos. É que a "incongruência ou disforia de gênero" entre menores é um tema delicado, que causa polêmica em muitos países por causa da tenra idade.
Hoje com oito anos, cabelos longos presos com prendedor rosa e vestido da mesma cor, Agatha aparece sorridente no fundo de tela do celular da mãe.
"Não era um sonho ter uma criança trans... Duvidei muito", admite Thamirys, que precisou enfrentar os próprios preconceitos, mas sobretudo, o medo do meio.
O Brasil é o país com mais mortes violentas de pessoas trans, com 118 em 2022 ou 29% do total mundial, segundo a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil.
- "Contar com a sorte" -
A esta circunstância se soma uma progressão do conservadorismo no país durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), defensor da família tradicional, reafirmada pela ampla maioria de direita eleita no ano passado para o Congresso.
"Toda vez que a minha filha passa pela porta, fico insegura, tenho medo que digam que ela é uma aberração, que a agridam ou excluam. E fico muito grata toda vez que ela volta porque sei que isso é um privilégio", diz a mãe, com a voz embargada.
Transformada em ativista dos direitos de crianças e adolescentes trans, ela fundou em 2022 a ONG Minha Criança Trans, que tem quase 600 membros.
"É um absurdo o Estado não ter nenhum mecanismo de proteção para nossos filhos e tantas crianças e adolescentes trans que estão na nossa sociedade, sendo violados, vitimizados. Nosso maior interesse é ter políticas públicas porque hoje uma criança ou adolescente trans no Brasil tem que contar com a sorte", diz.
Para Aline Melo, membro da organização, o Brasil "viveu um período de muito retrocesso nos últimos anos".
"Meu filho, Luiz Guilherme, um adolescente trans de 14 anos, tem orgulho de ser quem é, mas sabe que da porta pra fora nem sempre pode" se expor livremente, lamenta.
- Uma nova identidade –
Celeste Armbrust lembra ter chegado ao salão com a cabeça coberta e o olhar baixo. Depois do trabalho do cabeleireiro, recorda que seus olhos se iluminaram ao ver no espelho os cabelos castanhos com mechas vermelhas.
"Finalmente me senti como eu mesma, livre de fato", conta à AFP a jovem transgênero de 17 anos em seu quarto, onde carrinhos e acessórios femininos convivem lado a lado.
Celeste iniciou a terapia hormonal aos 16 anos, idade autorizada por uma norma do Conselho Federal de Medicina em 2020 e revelou sua nova identidade na escola, motivando outros a fazerem o mesmo.
Mas, admite que lhe falta essa "coragem" para sair desacompanhada.
"Ela evita estar sozinha por medo de ser apontada e sofrer alguma coisa", diz a mãe dela, Claudia Armbrust.
- Expulsos de casa -
No Brasil, com 214 milhões de habitantes, há apenas cinco centros públicos de atendimento a crianças e adolescentes para questões de identidade e gênero.
O do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo acompanha quase 400, cerca de uma centena entre os 4 e os 12 anos, e tem uma longa fila de espera.
Em casos de "incongruência de gênero", as crianças são acompanhadas em sua "transição social"; aqueles na puberdade podem "bloquear" o processo, ou seja, frear as mudanças como a menstruação nas meninas e a penugem facial nos meninos; e alguns maiores de 16 anos recebem tratamentos hormonais.
Agatha e Luiz Guilherme frequentam o centro na capital paulista, como Celeste fez no passado.
Ali, "sentem-se compreendidos e acompanhados nessa descoberta", explica Larissa Todorov, psicóloga no ambulatório paulistano.
Mas poucos têm acesso a esta assistência, que conta com poucos recursos.
Carolina Iara, de 30 anos, deputada estadual intersexo em São Paulo (PSOL-SP), destaca, apesar de tudo, alguns avanços em relação à sua geração.
No entanto, "a gente ainda tem essa dificuldade do básico. Esses adolescentes trans, principalmente essas adolescentes trans e travestis, são expulsas de casa com 13 ou 14 anos e vão parar na prostituição", adverte.
A.Goretti--IM